segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Incenso para pedidos mágicos

"Quase todas as tardes, sentavam tranquilos na borda da floresta, para realizar seus inocentes rituais de elevação e investigação. Fazer planos, rir, fumar tabaco, beber chá. Tirar a sorte nos dados, nas cartas, nas folhas. Procurar pelos sinais mágicos, dispersos pelos cantos menos observados da natureza. Procurar por plantas específicas, comunicar com pequenos animais. E muitas vezes, apenas sentavam para ouvir o vento nas árvores e o passar da luz.

O enorme gramado sumia em meio à barreira de árvores que se erguia alta, depois de uma caminhada de bom tamanho, deixadas para trás as pessoas e cabanas e crianças curiosas.

Nunca entravam na floresta. Ficavam observando, talvez a uma dezena de metros, a muralha verde, alta e ameaçadora, de galhos retorcidos e folhas em movimento. Tons de verde, claros e escuros, e a luz do entardecer filtrada pelas folhas, criando quadros de aquarela vivos. Falando baixo, para não perder os sons  que viessem da distância penumbrosa. Sentados de pernas cruzadas, como monges pacientes, esperando uma mensagem, ou um mensageiro.

As vezes, conversavam ainda mais baixo, sobre as coisas realmente grandes que lá viviam lá dentro. Sobre suas intenções, suas capacidades. Suas naturezas misteriosas. Rumores de tesouros, artefatos mágicos, seres sombrios fugidos de outras terras que vieram se refugiar ali, na grande floresta impenetrável. E então se calavam, mais atentos, pousando cachimbos apagados na relva.

Foi numa dessas tardes, com sombras já longas, que acenderam um tipo estranho de incenso, cuja fumaça soprou primeiro pelo gramado, e depois, com uma mudança suave da brisa, em direção à mata. Foi passeando, infiltrando-se por entre troncos e arbustos. Alguns animais pequenos paravam, farejando curiosos. Outros fugiam.
Um fio de fumaça alcançou, lá dentro da floresta, uma pequena formação de rochas, uma caverna quase natural. Seguiu seu passeio para dentro dessa toca escura e úmida. E então, um fungado alto, um estralo de galhos, e os pássaros se calaram.

Eles continuavam conversando, mais animados hoje: haviam trazido vinho, e bebiam em goles pequenos e demorados. Um dos rapazes, de cabelos encaracolados, passeou com o olhar ao redor do círculo de amigos sorridentes, e fixou-se no floresta lá atrás... alguma coisa...

Lá dentro, uma forma de cor marrom os observava, imóvel como uma estátua.Sua figura se confundia com a casca velha dos troncos das árvores. Eram inconfundíveis, braços magros e longos cabelos sujos.Teria balançado de leve, de um lado pro outro? Seriam dois pontos amarelos no lugar de olhos?
Ele engoliu em seco, e procurou alcançar de maneira natural a taça de vinho lhe era oferecida.Ao mesmo tempo, fixou seu olhar no amigo do lado oposto, o que vestia uma capa com capuz, que lhe ocultava os olhos. Viu que ele estava rígido, subitamente tenso... olhava em sua direção, vira seu olhar assombrado e sabia o que significava.
-Acho que devemos ir agora... deixem o vinho.
Todos os outros ficaram sérios. Funcionara.
Levantam-se, evitando movimentos bruscos, sem olhar para a floresta. Recolheram suas coisas, deixando apenas o incenso, uma garrafa ainda cheia do vinho, e uma pequena sacola de couro. Junto à essas coisas, deixaram ainda um bilhete, cravado no chão com um graveto fino.
E foram embora, a passos lentos.

Na tarde seguinte, as cinzas do incenso jaziam úmidas sobre a relva. A garrafa se fora. A bolsa de couro continha os objetos que haviam solicitado."

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Valhalla Rising

"In the beginning, there was only man and nature. Men came bearing crosses and drove the heathen to the fringes of the earth."

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Wendigo

"Faminto e emaciado, o Wendigo espreita as terras congeladas do Norte. As garras de seus pés formam sulcos na carne da terra, seu hálito fétido se condensa à sua frente, seus dentes se abrem num eterno rosnado. Seu rosto, apenas um crânio envolto em pele, com olhos vazios e presas quebradas, sangue escorrendo de seus lábios rachados, nojentos. Suas mãos tortas se parecem com grandes aranhas pálidas, mordendo braços longos e esqueléticos.
Com três metros de altura, apoia-se sobre pernas semelhantes a brotos de árvores, dobrados e quebrados, que carregam seu corpo para frente numa velocidade apavorante, impossível."

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Nós, as testemunhas da Existência

Você é o deus dos pequeninos seres que compôem você mesmo. E você também é uma pequena parte viva de algo maior que está nascendo, tomando forma a partir da evolução humana.

Somos maiores e mais complexos do que muitas formas de vida neste mundo, mas inevitavelmente, surgirão formas maiores e mais complexas do que nós. Ela já estão aí, surgidas de nossas invenções.
Veja as nossas cidades, grandes aglomerados de seres, como os primeiros seres multicelulares vivendo em comunidade. As ruas agitadas, semelhantes às veias de nosso corpo, transportando materiais diversos de um lugar a outro. Os diferentes pontos da cidade, realizando funções específicas, como nosso órgãos.
E assim também, a relação entre organismos ainda maiores: os povos, as nações, talvez no futuro, entre planetas.


 Não acho que isso seja coincidência: acho que isso tudo segue, de fato, uma ordem, um plano, não instituído por um mapa divino, tampouco planejado antes de tudo,  mas segundo um impulso natural de construir, aglomerar e crescer a partir de pequenas peças. Como se você usasse peças de Lego para construir uma ainda maior. A grande estrutura é feita de tijolos semelhantes à ela mesma. E depois, ela mesma se une a outras para formar algo ainda maior... e assim por diante.

A escada da complexidade vai subindo e a consciência se expande a cada nível "hierárquico". Porém, cada nível permanece; as fundações não podem ser descartadas, e cada porcentagem de zoom revela um micro (ou macro) cosmo em si mesmo. Por isso é que a idéia de hierarquia deve ser considerada com cuidado. Talvez o melhor seja dizer simbiose, uma cooperação entre os diferentes níveis. Todos são intermediários: nada pode ser considerado inferior ou superior no sentido comum do termo, e sim, em graus de complexidade ou arranjo.

O ser humano, ou, a consciência humana, é um degrau desta escada.

Deus nascerá a partir de nós, como dizem os teóricos de uma idéia chamada Ponto Ômega. O terceiro estágio de evolução manifesto nesse mundo é a Noosfera, a esfera dos pensamentos humanos, nascida a partir da Biosfera, a das coisas vivas e em movimento realizando e aprimorando transformações químicas, e essa esfera ainda, nascida do Reino Mineral, dos elementos simples que aí estão desde muito tempo. Em cada estágio, o nível de complexidade aumenta. As estruturas básicas se tornam seguras, e a vida se manifesta em novas formas.

Não me considero propenso a conversões religiosas absurdas; também sempre fui crítico com a imagem do Deus-pai da Bíblia, e com a doutrina de Cristo. Para mim, é uma religião bárbara e sanguinária, baseada num Deus mesquinho e egoísta, que prega a idéia de punição ao livre-arbítrio através do sofrimento, além de espalhar o conceito de Mal Absoluto, isto é, a maldade pela maldade, e um inimigo da humanidade, Lúcifer.

Mas existem muitas outras formas de espiritualidade, formas livres e não-doutrinadas, que parecem estar mais próximas de uma compreensão sensata do universo. Pensar nessas coisas têm me trazido uma nova idéia de espiritualidade, e a sensação de pertencer à algo maior do que eu mesmo, de senti-lo pairando nos limites da compreensão. Algo pretende se revelar nos portões da névoa.

E quanto aos níveis de complexidade, da seta ascendente da matéria-consciência... tenho a louca fantasia de que ela, na verdade, forme um círculo. O caminho.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Humanidades

 Achando que era preciso se deslocar mais rápido que o vento e a chuva, montaram sobre um animal que pudesse carrega-los estrada afora. E depois, resolveram mesmo andar onde estavam o vento e a chuva, andando em máquinas monstruosas que se jogam pelos ares, ocasionalmente, matando-os às centenas.

E porque resolveram ir ao trono em vez de ir aos pés, construíram complicados artefatos de cerâmica para receber suas sujeiras, e ao mesmo tempo, um complicado sistema de levar a sujeira para bem longe, pois no palácio asséptico do homem, qualquer odor aparece. A natureza agora era suja, cheio de seres invisíveis prontos a corromper sua saúde. Era preciso manter uma santa distância.

E porque suas vidas tornaram-se enfandonhas, tediosas e repetitivas, voltaram-se com gula obsessiva para as artes e a fantasia, lapidando-as ao nível da perfeição para vivenciar histórias mágicas, aventuras, perigos e grandes façanhas... pois cada vez mais isso faltava à vida real.

E porque o solo e o ar e os alimentos perderam seu vigor, exaustos pelos duros trabalhos de produzir sem cessar, passaram a alimentar-se de venenos picantes, falsos alimentos e vitaminas artificiais. Comer tornou-se uma atividade matemática.

De fato, os números agora estavam em toda parte! Limitando, ordenando, registrando, separando e distribuindo. Entre aqueles que os tornaram uma instituição.

E assim por diante. Novas estruturas artificiais feitas para lidar com os problemas das antigas. Camada sobre camada de distanciamento.

E em todas as épocas, poucos dentre eles pareciam se dar conta de que aquele caminho não era único e obrigatório; de que as coisas poderiam ser diferentes. 

Mas afinal... ninguém quer ficar embaixo da chuva, chupando ossos secos.





terça-feira, 13 de maio de 2014

Falece H.R. Giger... mas sempre haverá uma rainha-alien em cativeiro.

Falece o "criador" do Alien.

O primeiro filme que assisti da série foi na verdade o segundo, Aliens - aqui, conhecido como "Aliens - O resgate". Lembro que, na época, ainda jovem e impressionável, a história me era dum pavor fascinante. O menino preso na parede, a descida ao ninho das criaturas, as claustrofóbicas sequências finais, a luta contra a Rainha, tudo isso se encaixava num roteiro de ação brilhante, inescapável, que marcou minha juventude para sempre, me tornou um fã da criatura, da série e por fim, também do gênero - ficção científica e terror. Foi uma dessas obras essenciais que povoaram a minha imaginação em anos já bem distantes, junto com outros clássicos da época, esses que hoje em dia você já começa a assistir com um gosto especial, por serem antigos, parte da sua história... deve ser o que se chama de nostalgia. Eu ainda não estava interessado em saber quem eram os atores, diretores, ou de que ano eram os filmes (mais tarde eu aprenderia que eles já tinham bastante idade na época de exibição), bastava apenas assisti-los de novo e de novo - um prazeroso exercício de imaginação visual, de recontar a história na minha cabeça.



 Foi só muito tempo depois de ver e rever as sequências é que fui conhecer o primeiro filme, num ritual de atenção e curiosidade. Ali está o começo de tudo: a história, o monstro, a heroína, o visual, tudo no ano distante de 1979, a bordo de uma nave sombria que encontra um destino terrível em um planeta ainda mais sombrio.
A bordo do Nostromo. Nave-cargueiro de mineração.

O enredo segue um ritmo marcadamente mais lento. A história toma seu tempo para apresentar a nave, os personagens, e a insólita situação em que os personagens vão se enredando.
O cenário em si é úmido e gotejante, cheio de cantos e sombras, fazendo um paralelo com a criatura... também úmida e gotejante, extremamente resistente e assassina.

E quem fui encontrar no papel do andróide-cientista-psicopata? Ian Holm, o próprio Bilbo Bolseiro, 20 e poucos anos antes. Que legal!


Nessa época de efeitos visuais beirando a perfeição, tomadas super rápidas e câmeras frenéticas, Alien é um alívio, uma beleza de se assistir e ouvir, com cenas espaçadas, lentas, deixando o olho absorver as cores e texturas, a trilha sonora discreta aumentando a sensação de solidão... solidão no espaço.




quinta-feira, 8 de maio de 2014

Fantasmas

Passou despreocupadamente por uma lata de coca-cola na calçada. Estava de pé, como se alguém a tivesse bebido e se dado ao trabalho de a ter pousado ali, interrompendo o fluxo de caminhantes, observando-os com o olhar crítico de um pedaço de metal. Alguém voltando para casa depois dum dia de trabalho, terminando de comer algo salgado entre os dedos, molhando o estômago com ácido. Mas... ele recém passara pela lata de lixo mais próxima, no topo do morro, de onde ele vinha descendo, olhando a neblina que cobria o bairro. Vai saber - humor de gente.

Estava fumando, e estava atrasado. Mesmo assim, olhou a lata e desviou, pisando para a direita. Alguns passos depois, escorregou de leve no musgo da calçada. Fez "tsc" e continuou. Anos antes, seu pai havia descido essa rua com pressa, num dia de chuva, e fraturara uma costela.

Atrás dele, veio um ruído metálico.
O ruído inconfudível de uma lata sendo amassada... como uma pessoa amassa depois de terminar de beber o conteúdo.
Ele olhou para trás. Estava no mesmo lugar. Distorcida. Amassada. Julgou mesmo que houvesse algum movimento, como se recém pousada ali.

Engasgou com a fumaça do cigarro e seguiu adiante. Acelerou o passo, ignorando o musgo e a umidade.Estava atrasado.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

Notas sobre o Pira Rural

Existe um vale místico, a certa distância daqui...e fica em Ibarama. Mais especificamente, na cascata do Pira Rural. Mas esse vale não tem máquinas, nem é polo metal-mecânico; tem pessoas, muitas pessoas, pessoas diferentes, bonitas, pessoas de toda parte.




Sexta-feira, saímos cedo, com tudo já pronto na noite anterior: empacotados, bem-dormidos (na verdade, nem todos heheh), e enfim, reunidos na kombi que dessa vez foi espaçosa pelo familiar trajeto em direção à Sobradinho e depois Ibarama, e depois aquela mítica descida pedregosa para o vale oculto, talvez uma grande tigela com árvores nas bordas. Algo assim.

Logo na entrada, avistei duas borboletas azuis semelhantes às que temos aqui em Panambi - considerei bom presságio.

Na hora de subir no palco, a sensação familiar de ansiedade e uma excitação positiva de "chegou a hora de mostrar." Os ponteiros da afinação não queriam colaborar muito, mas enfim subimos. Som forte, aplausos, cerveja, e pronto. O resto é curtir e tomar aquele trago forte pra dormir direitinho.
Dormir? Minto. Os corujões se revelam já na primeira noite... e pagam o preço no dia seguinte. E vão parcelando nos outros dias. Dormir, entre acampamento e festival, é de menor importância.


Pra mim, as melhores surpresas nesse festival: Mar de Marte e Célula Soul. Não sou muito o cara de ficar vidrado na frente do palco - geralmente estou ocupado consumindo drinks variados no acampamento - mas essas bandas aí realmente me chamaram a atenção. Em especial a Mar de Marte, som pesado, psicodélico, viajante e diferente... muitas bandas desse meio prezam demais pelas levadas "jam", um pentatonismo que se torna meio cansativo as vezes.Mas nada que magoe os ouvidos admirados. Aliás, o melhor sempre é estar entre essa coletânea de bandas de atitude independente e descontraída, todos querendo mostrar aquilo que prepararam pro público carinhoso do festival.

Depois da Célula Soul, veio a Rinoceronte... aquela bala de canhão sonora que são os caras.Momentos de reverência geral do público!

Já não lembro a sequência exata de bandas e fatos e diálogos, mas tivemos ainda um Dziw Jazz Trio alcalinizando os ouvidos jazzísticos do público, sempre extraindo gritos e aplausos animalescos de admiração, diante de um som tão sofisticado.

Tivemos o Max Sudbrack no palco livre se insinuando pelo Dark Side of The Moon na maior tranquilidade... acho que esse cara dorme no lado negro da lua, debaixo de um piano. Só pode.

"Os anjos também morrem", creio que era esse o nome da peça apresentada por um duo "entre-bandas"... me trouxe muita inspiração pros meus próprios projetos atuais, com a idéia do mito do ser de luz que cai na escuridão da humanidade. A cena final da criatura sufocando a si própria num casulo distorcido me arrancou arrepios e ficou na memória. Eu que costumo torcer o nariz pra teatro, mas com uma trilha de cello daquelas... muito interessante.

No último dia, me arrisquei com alguns amigos na água gelada da cascatinha... realmente, só me permiti arriscar, porque me atingiu como facas de gelo nessa minha carcaça magra. Mas, ao contrário da maioria dos meus amigos, que dizem voltar "renovados" do festival, pelo contato com a música, natureza e amigos, eu geralmente volto desgastado, com uma sensação de vazio. Não sei dizer bem o porquê; algum tipo de reação do meu lado fóbico-social.

Em compensação, valeu o hipnotismo das paredes de pedra da cascatinha, os contornos florestais do vale e os declives de relva. Existe um espírito sutil ali, que sorri para os seres falantes e risonhos habitantes da madrugada fria. O cenário domina.


Quem quiser conferir os registros visuais e ter uma idéia da paisagem, já tem uma enxurrada de fotos no Facebook. Vão lá.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Conselho para nós, peregrinos do feriado de Páscoa


"A good traveler has no fixed plans
and is not intent upon arriving.
A good artist lets his intuition
lead him wherever it wants."*
 
Laozi, filósofo taoísta
 
 

 Visto que seremos viajantes nos próximos dias, e que também há artistas entre nós, aceitemos o conselho do filósofo -ainda que tenhamos a intenção, sim, de chegar, e que para isso sejam necessários planos fixos, heheh.

Quase hora de partir: juntar a bagagem, calcular o dinheiro, olhar com suspeita a previsão do tempo. Escolher quais roupas voltarão imundas. Resumir tudo em uma mochila.

 E não esquecer do cigarro.






*Um bom viajante não tem planos fixos e não tem a intenção de chegar. Um bom artista deixa sua intuição guia-lo para onde quiser.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Quarto Ácido no 5º Pira Rural me leva a refletir


Mais uma vez, nós.

Este festival é simplesmente muito bonito. Já fazem alguns anos que eu, meus amigos e colegas de banda viajamos para lá, para passar alguns dias de insônia em barracas úmidas.
A paisagem é mística, a bebida é abundante e as pessoas são bonitas e interessantes. Sempre que vou para lá, fico com um sentimento de estar indo embora da máquina, para permanecer alguns dias vivendo escondido numa comunidade paralela à sociedade comum.


Daí, estando lá, você perde a noção do tempo - e essa é uma nobre sensação, nessa época em que vivemos. Relógios, calendários, cronogramas, despertadores, dias da semana, meses do ano... tudo isso, mecanização de uma idéia estranha que, na minha opinião, nos proporciona basicamente intranquilidade.

Queria apenas o nascer e o pôr-do-sol como referência! A suave mudança das estações, os hábitos da fauna e a fisionomia da flora. Não quero e não necessito ter uma idade e um aniversário; não reconheço datas comemorativas - a chegada da primavera e do outono são festivas o suficiente.




Quarto Ácido tocando "Psycodelic Pilger"
Praça central da Cidade das Máquinas

Despertar todos os dias num susto, com um ruído estridente, mesmo nas manhãs mais frias de inverno. 
Devorar uma farta refeição no horário mais quente dos dias de verão, para depois desfalecer sem forças devido ao calor e ao esforço estomacal.
Sentar em cadeiras.
Sustentar uma "medicina" que trata os sintomas e não as causas.
Entre outros absurdos.

Pra mim, o povo que pratica tais hábitos está sufocando a si próprio com uma habilidade mórbida. Está insano. E está condenado, apodrecendo de dentro pra fora.¹

Por agora, essa tribo vai (...)² fugir pro vale, pra cascata. Passar uns dias numa dieta de carne, cerveja, música e tabaco. Faz de conta que é uma detox com senso de humor. 





¹Mas seremos nós a geração a ver as Grandes Mudanças.



 ²Fugir pelo asfalto... seguir a estrada velha.. .encontrar o vale oculto, que recebe o visitante com uma íngreme estrada de pedras...





terça-feira, 1 de abril de 2014

Lady Grey (4 & 20)


"A palavra folclore vem do inglês folk (povo) e lore (estudo) e significa o conjunto de tradições de um povo que é transmitido oralmente de geração em geração."

Carreguei essa citação comigo num pedaço de papel em minha carteira, até que foi perdido em circunstâncias irresponsáveis em alguma cidade longínqua. Porém, a tinta do papel acabou ficando gravada no envelope plástico em que estava guardada (estes onde guardamos nossos documentos), o que me permitiu transcreve-la aqui. É simples e bonita, motivo que me levou a guarda-la.

Hoje irei conhecer Lady Grey.

Lady Grey é um chá da marca Twinings, que tem mais de 300 anos. É feito com chá preto, laranja e limão, e vem numa bonita caixinha azul. Pelo nome, acho que pretende ser a contraparte do Earl Grey, clássico chá britânico que conheci do filme 007: Skyfall. (não sou grande conhecedor da série, mas curto muito o Daniel Craig no papel.)*


Ou seja, vamos provar um pouco de chá folclórico. Afinal, se as pessoas estão tomando isso por  300 anos ou mais, pode-se dizer que é uma tradição oral, certo? hehehe...
E a série 007 já não tem dezenas de filmes?

Só pela hora do chá.


*E nem sou um grande conhecedor de chás. Só o que entendo é um vício em cafeína que já tem uns 15 anos, vivendo de café. Pelo menos larguei os energéticos.



segunda-feira, 31 de março de 2014

Macrocosmo & microcosmo: um círculo? Indagações de von Mecking

Vamos descendo... e descendo, fazendo um zoom para dentro das estruturas materiais... e observando a repetição de padrões... algo se revela aqui.

 "The same from near as from far.

O planeta. Os continentes. As cidades.
As cidades, com suas estruturas sólidas que são ossos e órgãos, e suas ruas, que são veias, onde corre o sangue, o plasma, as células com funções específicas, os carros e as pessoas e os vírus.

As comunidades humanas, que são como aglomerados de órgãos desempenhando funções específicas: eu faço isso, você faz aquilo, e assim trabalhamos juntos, da mesma maneira que meu fígado desempenha uma função, e meu coração, outra.

As pessoas em si: com seus tecidos, órgãos, células... células e materiais transitando pelo sangue, as rodovias vermelhas da cidade biológica humana.

Mais para dentro.

O complexo de Golgi boiando na segurança do plasma em equilíbrio ácido-alcalino, no interior das paredes celulares. As enigmáticas estruturas do DNA, quebrando e refazendo.

Os átomos. Os elétrons e o vazio, a abundância de espaço vazio, até as fronteiras do núcleo.
E além? Mais uma unidade fundamental? A esperança absurda de definir um limite final para a pequeneza, a "última peça" fundamental da matéria? Delírio! Incoerência!



"Um círculo, que se torna mais complexo de acordo com a potência da lupa. Este universo é de uma complexidade infinita, mas a interpretação absoluta de sua estrutura é facultativa, depende da interpretação pessoal do ser consciente, que nada mais é do que um ponto de vista com vontade própria."

E nosso zoom metafísico segue, realizando quantas voltas quiser. E epois de muito repetir esse caminho misterioso, reto e ao mesmo tempo circular, adquirimos o entendimento de seu desenho... tão simples que nos faz sorrir.



¹"O mesmo, tanto de perto como de longe." - tradução aproximada

quarta-feira, 26 de março de 2014

Sandy Denny e a Batalha de Evermore

 Então, resolvi conhecer melhor a vocalista que participa de nossa querida canção "The Battle of Evermore", de nossa ainda mais querida banda Led Zeppelin.

Nascida em 6 de janeiro de 1947, Sandy Denny é mais conhecida por seu trabalho com a banda Fairport Convention, na qual participou de alguns dos álbuns iniciais. Seguem aqui elencados:

What we did in our holidays (1969)
Unhalfbricking (1969)
Liege & Lief (1969)
Rising for the Moon (1975)

Participou em apenas uma faixa do disco Babbacome Lee, de 1971, a canção "Breakfast in Mayfair". Contribuiu com backing vocals na canção "Rosie", no disco de mesmo nome, de 1973. Sua última participação com a Fairport Convention foi no álbum Rising for the Moon.




Aleatoriamente, resolvi baixar um de seus álbuns solo, o qual não ouvi até o momento dessa postagem: trata-se do The North Star Grassman & The Ravens. Não compreendi exatamente o título, mas a palavra grassman se refere à uma criatura semelhante ao Pé-Grande (bigfoot) que supostamente habitaria o estado de Ohio, nos EUA.

Sandy aparentemente teve sua cota de abusos químicos, não interrompendo a festa mesmo durante a gravidez de sua filha Georgia, consumindo álcool e cocaína. Após cair de uma escadaria e machucar fortemente a cabeça, ela se voltou para o analgésico Distalgesic para aliviar as fortes dores que apareceram depois do acidente.


Morreu em 21 de abril de 1978, após entrar em coma e em seguida sofrer uma hemorragia cerebral. Sandy Denny tinha 31 anos.




No mítico álbum Vol. 4 do Led Zeppelin, ela teve seu próprio símbolo incluído ao lado dos outros caracteres da banda, por sua participação em The Battle of Evermore.
 That's all, folks.



segunda-feira, 24 de março de 2014

Vila dos Confins, de Mário Palmério

Esse me fisgou já pelo começo, com nosso herói Xixi Piriá andando solitário pela caatinga, carregando sua mochila abarrotada de utilidades para comércio, e sequer imaginando ser presenteado com um valioso punhal pelo deputado Paulo Santos, mais adiante na história. Engraçado que, em algum momento no passado, lembro de ter lido o capítulo de abertura sem muita atenção... tempos depois, foi exatamente uma nova leitura distraída das páginas que me prendeu e fez continuar.

Umas das coisas que me atraiu no livro foi a narrativa agradável, bem descritiva da região dos Confins, que é basicamente a caatinga árida -  que parece um outro mundo, inóspito e romântico, pelo menos do ponto de vista de um cara nunca viajado para fora do Sul.

O enredo, além de de contar as dificuldades da realização da primeira eleição na Vila dos Confins (traições, subornos, estratégias e peregrinações pelas estradas e vilarejos miseráveis) abre momentos muitos interessantes para "causos" contados pelos personagens, o que, imagino, tenha sido a maneira do autor de expandir sua descrição do mundo da caatinga, as pessoas e personalidades, o estilo de vida, humana e selvagem. Temos cobras, piranhas e onças, tudo num clima pescaria-e-cachaça e muita atenção aos truques e artimanhas da fauna, que luta pela sobrevivência e vez ou outra causa problemas aos vaqueiros e seus rebanhos, praticamente proporcionando o surgimento de lendas e contos fantásticos.

A narrativa de Mário Palmério é abundante em palavras e expressões regionais, tornando a leitura exigente para o leitor acostumado à um vocabulário mais simples; mas acredito que não atrapalhe a narrativa, bastando um pouco de interpretação e imaginação, tornando assim a leitura rica e diferenciada... em tempos de best-sellers acelerados, essa leitura é quase uma bizarrice. Mas enfim, eram outros tempos, outros autores e outra cultura. Um bocado de intelectualismo, disfarçado, e regionalismo, esse escancarado desde o começo.

Nenhuma citação por aqui, mas se fosse incluir, acho que seria do capítulo sobre os habitantes do garimpo, vivendo de rapadura, fumo e cachaça, em galpões miseráveis, mas absortos no peneirar das rochas, em busca de ouro, que uma hora ou outro, brilha no meio dos sedimentos do leito do rio.

E é isso! Vila dos Confins, de Mário Palmério. Desconfio que os escritos à caneta na primeira página sejam um autógrafo do próprio autor, o que não é de duvidar, se tratando de um livro da pequena biblioteca de meu pai, essa que já me forneceu tanta coisa e que ainda continuo explorando sem pressa com o passar dos anos - além de ir formando a minha própria, é claro.

Do mesmo autor, localizei ainda Chapadão do Bugre, que promete ser obra igualmente interessante, mas não sei se vou encarar essa sequência... tenho outros livros na fila, e no momento, estou indeciso diante dum monstrinho escrito por autor que já conheço, esse  difícil Umberto Eco.

No futuro, retorno à caatinga.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Não sei bem o que é um equinócio

Diz ali no Google que hoje é o Primeiro Dia de Outono. As folhas douradas e tal.

Detesto calendário, relógio, despertador, datas e celebrações. Não gosto dessa divisão mecânica do tempo, porque nos dá uma idéia de tempo "passando", tempo "perdido ou ganho", etc.

Nada disso existe.
Gostaria de viver apenas pelo subir e descer do sol, o lento andar das estações, e só. Claro, haveriam algumas complicações, mas acho que seria mais interessante. Aplicar números ao fenômeno da luz e temperatura... bom, isso é um entre inúmeros costumes bizarros que caracterizam essa nossa época.

(...)

Data de nascimento: outra chatice. Garanto que seríamos mais felizes sem ter "idade".

Bem-vindo, outono.




quarta-feira, 19 de março de 2014

Cobra-de-fogo

Calafrios! Desconfiança!
Pois foi num dia que nem esse, com essa chuvarada e essa cara sombria, que veio a Grande Escuridão, a noite sem fim que cobriu o pampa em tempos muito, muito antigos...

Primeiro, veio a chuva, que fez os córregos transbordarem, e encurralou os animais no topo das colinas... muitos se afogaram, grande foi a mortandade...

E a boiguaçu, a cobra-grande temida pelos índios, ficou furiosa com a inundação da sua toca, e saiu catando carniça dos bichos afogados - gulosa ela era, mas somente pelos olhos; espremia os corpos mortos até lhes saltarem das órbitas, e assim a cobra ia vagando campos úmidos, aproveitando a fartura de carniça, como príncipe degustando cacho de uva.

E na noite sem fim, os homens, tristes, sem churrasco, só ouviam o canto do téu-téu anunciando a cobra enlouquecida de fome rondando os rebanhos - pois os olhos, apesar de saborosos, não dão sustância, e a boiguaçu foi ficando luminosa, por dentro, um fogo frio como chama azulada, meio transparente, pavoroso de se ver no meio do campo...

Boiguaçu virou cobra-de-fogo, boitatá! E quando finalmente veio o dia, ela já morta, era só fogo-fátuo pra assustar vaqueiro perto dos banhados...

Mas não se engane: chuvarada, quero-quero preocupado, cuida teu rebanho... que a cobra-grande vêm rondando...

segunda-feira, 17 de março de 2014

"Mas quando se tem grandes idéias..."

"Como acontece com boa parte dos quietos, ele gostava das pessoas conversadeiras quando elas se dispunham a falar e não esperavam que ele correspondesse. (...) Mas a bruxinha sardenta que tinha ao seu lado era muito diferente e, embora achasse muito difícil acompanhar os efervescentes processos mentais da menina com sua inteligência mais vagarosa, ele percebeu que "meio que gostava do palavrório dela". E por isso disse, com a mesma timidez de sempre:
     - Oh, pode falar quanto quiser. Eu não me importo."
 Anne de Green Gables - L.M. Montgomery


No meu caso, geralmente estou escondido atrás de um Hollywood, acenando a cabeça e tentando captar os traços de personalidade mais marcantes, aqueles que saltam através da conversa casual das pessoas. Muitas vezes me pergunto se elas se dão conta disso, de como tanta coisa se revela em suas frases, na escolha de palavras, no tom de voz...
Aliás, nem é preciso "captar" nada - o retrato geral da pessoa se revela espontaneamente. Aí você fica pensando nos interessantes processos mentais que devem se passar por trás de tudo isso. Os anos passam, e os amigos mais antigos se tornam os quadros mais complexos, com mais tons, com mais profundidade, os detalhes vão acrescentando. As brigas tem mais argumentos, as comemorações são mais íntimas, e o humor é mais absurdo. A amizade antiga tem mais dimensões, mais contexto sentimental.

O que? Sim, claro que eu estou inventando tudo isso. Claro. (pigarro) Mas, inventado ou não... o interesse de pesquisador é o mesmo.
Lá do alto da minha torre.


quinta-feira, 13 de março de 2014

Livros e intervalos

"Matthew temia todas as mulheres, com exceção de Marilla e da sra. Rachel. Tinha a sensação de que essas criaturas misteriosas riam dele em segredo. Talvez não estivesse muito longe da verdade, pois ele era uma personagem de aparência estranha e desajeitada, com cabelos compridos e grisalhos que lhe roçavam os ombros caídos e com a mesma barba castanha e cerrada que ele cultivava desde os vinte anos. Na verdade, sua aparência aos vinte não fora muito diferente de seu aspecto aos sessenta, exceto pela ausência de cabelos brancos."
Anne de Green Gables - L. M. Montgomery

Começando bem com a nova companhia de almoço aqui no trabalho - novos e interessantes livros ali na sala ao lado. Ao meio-dia, isso aqui é uma terra de sol e silêncio e árvores até o horizonte... "Ideal!", você diria... mas te conto, esse cenário dura pouco. Daqui a pouco o local já começa a enxamear com os pequenos alto-falantes sobre pernas - crianças. Elas me dão arrepios... imagino que a sensação seja recíproca, hehehe.

Mas, enquanto isso, vamos almoçando banana e bebida láctea sabor chocolate super-saborosa-e-cremosa.

"We must eat a peck of dirt before we die."

quarta-feira, 12 de março de 2014

Black cup of doom


Eu tenho uma xícara preta. Ela brilha, sombria, sobre a minha mesa.

Ela me acompanha no ritual matutino, me coloca no mood das manhãs agora mais frias. Me salva ao meio-dia, e me observa durante a longa tarde, suando com gelo por dentro.

Quente ou fria, congelando, exalando vapor... ela é sólida e se presta a todas as minhas sedes (que são tantas). É espaçosa,  tem o peso certo na mão. Demarca meu território na mesa, anuncia minha identidade sem rótulo ou enfeite, apenas cor e textura, do jeito que eu gosto.
Ocasionalmente, molha minha barba, talvez ofendida com bolhas de gás ou mudanças bruscas de temperatura.

 Dona de um brilho sombrio - me faz companhia com seus conteúdos secretos.