Que droga. Números.
Números já no começo do dia.
"Números são os cercadinhos do potreiro moderno da sociedade, e nós somos as ovelhas assustadas, perseguidas pelos números."
Fungou irritado e jogou o relógio pela janela, por onde entrava o canto dos pássaros e a luz nascente.
Algum tempo depois, cansou-se do calendário. Jogou-o na cesta de lixo.
Dias da semana, mês, ano. Feriados, datas comemorativas. Matemática enfandonha.
Dispôs seus documentos sobre a bancada, intrigado com a necessidade de tais documentos. Certidão de nascimento pra que? Contar os anos? Pura bobagem.
"Não quero mais saber minha idade."
Concluiu que Idade não existia, Idade era uma invenção boba, causadora de angústias desnecessárias.
***
Descobriu-se perdido na saturação de cores do supermercado. Tinha fome, mas sentia-se numa loja de fantasias. Calorias, colesterol, glicose. Antioxidantes e vitaminas e carcinógenos. Quando foi que comer se tornou um ato tão complicado? Abandonou qualquer comida vinda numa embalagem, comida feita de números e elementos separados. Voltou-se para o açougue e a fruteira, considerou cultivar uma horta.
Vendeu o carro. A bicicleta moderna, de formato ergonômico.
"Percorrer somente as distâncias que minhas pernas podem aguentar, até que a sola do pé precise descansar. Que obrigação tem um cavalo ou uma mula com minhas tarefas humanas? O cão pode correr alegre ao meu lado."
Decidiu que um cajado bastaria para as estradas mais difíceis. Partiu.
***
Em algum ponto da estrada para as Terras Sem Dono, seu calçado começou a incomodar. Apertava seu pé, e afinal, não estava caminhando sobre cacos de vidro ou brasas. As pedras no caminho lhe fariam massagem. Deixou-os na beira da estrada, onde serviriam de abrigo para o primeiro escorpião oportunista.
Decidiu que seria sensato morar no menor espaço possível. Se precisasse de mais do que uma lâmpada para iluminação, é porque já estaria ocupando espaço demais.
Cadeiras, sofá, cama. Geladeira, forno, mesa. Armários e tapetes. Quilos de madeira e quinquilharias. Riu ao pensar que teria considerado a necessidade dessa imensa lista de itens.
Olhou para o cão, o cão deitava-se na relva, com folhas grudadas no seu pêlo. Parecia não precisar de muito mais.
Sentou-se no chão, e dormiu ali mesmo. No dia seguinte, coletou frutas e improvisou um abrigo com folhas e gravetos e rochas. Ponderou sobre as vantagens de viver da luz solar, da água e do vento. Com a idade, vem o discernimento sobre o que se pode deixar para trás.
"Até que nada mais reste do que você chama de si mesmo. O que nos define?" - pensava ele, sentado sobre as rochas.
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